Por Alessandro Lima
Introdução
O eclesiovacantismo [1] é a posição de grupos que se consideram católicos e que acreditam que o orbe católico está sem papas desde Pio XII, considerando este o último papa. Sua conclusão parte dos problemas doutrinários oriundos dos ensinamentos do Concílio Vaticano II e dos papas conciliares (De João XXIII até Francisco), daí concluem, como já fora dito, que o último Papa foi Pio XII. Porém, precisaram explicar a causa do suposto pontificado inválido dos papas conciliares. E para isso escolheram dois caminhos: (1) os papas conciliares são ilegítimos porque perderam seu pontificado por pecado de heresia; (2) os papas conciliares são ilegítimos porque por lei divina os hereges não podem ser eleitos papas.
Embora seja possível questionar se os papas conciliares foram hereges públicos antes ou durante seus pontificados, pois os eclesiovacantistas possuem um conceito muito elástico de heresia e não consideram o que a teologia católica chama de censuras teológicas, entretanto nenhum deles enquanto bispos ou cardeais sofreram qualquer censura canônica.
Neste trabalho iremos abordar a primeira questão, deixando a segunda para outro futuro.
- Objeção: os papas conciliares são ilegítimos porque perderam seu pontificado por pecado de heresia
O argumento resumidamente é que estando o Papa acima do direito canônico, ele não pode sofrer as penas do mesmo direito que punem crimes, logo ele só pode ser punido pela Lei Divina, e por isso ele é punido pelo pecado de heresia e não pelo crime.
Nos consta que o autor desta “pérola” é o já falecido Pe. Anthony Cekada, grande inspirador da turma da “cadeira vazia”. Em um artigo seu intitulado “Sedevacantismo Refutado?”[2] onde responde a um crítico seu, ele afirmou:
“Como muitos que escreveram contra o sedevacantismo, uma falha fundamental permeia o artigo do [autor] Sr. Sparks: ele parece totalmente inconsciente da distinção entre o direito eclesiástico (canônico) humano e o direito divino, e como essa distinção se aplica ao caso de um papa herético.”
“A heresia é tanto um crime (delictum) contra o direito canônico quanto um pecado (peccatum) contra o direito divino. O material que o Sr. Sparks cita trata da heresia como um delito e da censura eclesiástica (excomunhão) em que o herege incorre.”
“Isso é principalmente irrelevante para o caso de um papa herético. Por ser o legislador supremo e, portanto, não estar sujeito ao direito canônico, um papa não pode cometer um verdadeiro delito de heresia ou incorrer numa excomunhão. Ele está sujeito apenas à lei divina.”
“É violando a lei divina através do pecado (peccatum) da heresia que um papa herético perde a sua autoridade – ‘tendo-se tornado um incrédulo [factus infidelis]’, como diz o Cardeal Billot, ‘ele seria, por sua própria vontade, expulso o corpo da Igreja.’”
Pe. Cekada para convencer seus leitores de que um papa perde o pontificado por pecado de heresia, estabelece primeiramente uma falsa distinção entre “crime de heresia” e “pecado de heresia”. Com efeito, há uma distinção entre esses dois termos, mas não é aquela coloca por Pe. Cekada. Para ele, se a heresia é punida pelo direito eclesiástico é um crime (delictum). Se é punida pelo direito divino, é um pecado (peccatum). Partindo destas falsas premissas, ele conclui: já que o Papa não está sujeito ao direito eclesiástico, ele só pode ser punido (perder o pontificado) pelo direito divino.
O sofisma de Pe. Cekada já começa nas premissas, pois a distinção entre “crime de heresia” e “pecado de heresia” está no grau de manifestação do problema e não se é punido pela lei eclesiástica ou pela lei divina.
Se a heresia é interna ela é um pecado. Se a heresia é pública (não confundir com manifesta, chegaremos lá…) ela torna-se um crime. Colocaremos aqui a citação completa do Cardeal Billot que foi “espertamente” ocultada por Pe. Cekada de seus leitores:
“Dada, portanto, a hipótese de um papa que se tornaria notoriamente herético, deve-se admitir sem hesitação que ele perderia por esse mesmo fato o poder pontifício, na medida em que, tendo-se tornado um incrédulo, seria por sua própria vontade expulso do corpo da Igreja.” (grifos meus) [3]
Percebam que o Cardeal Billot refere-se a um “papa que se tornaria notoriamente herético”. A heresia notória é um delito (e não um mero pecado) segundo o Código de Direito Canônico de 1917, cânon 2197 n. 2 e n. 3:
“Um delito é:
- Notório por notoriedade da lei, [se for] após sentença de juiz competente que torne a questão julgada, ou após confissão do infrator feita em tribunal nos termos do Cânon 1750;
- Notório pela notoriedade do fato, se for de conhecimento público e tiver sido cometido em circunstâncias tais que nenhuma evasão inteligente seja possível e nenhuma opinião jurídica possa desculpar [o ato];”
Se um Papa fosse punido pelo pecado de heresia, ele já deixaria de ser Papa por heresia interna. Esta tese inclusive foi defendida por alguns no passado e corresponde à segunda opinião (de cinco) que São Roberto Belarmino discute sobre a hipótese teológica de um papa ser herege e que foi praticamente abandonada pelos teólogos [4]. Embora até recentemente alguns grandes teólogos da Igreja tenham sustentado que a heresia interna já separa o sujeito do corpo da Igreja [5], estes mesmos teólogos não acreditavam que a jurisdição fosse perdida pelo sujeito que estivesse fora do corpo da Igreja, assunto que trataremos no próximo tópico.
1.1 Um Concílio Ecumênico através do direito divino pode declarar a deposição de um Papa
Como já vimos, e com isto corrobora o próprio Cardeal Journet citado parcialmente por Pe. Cekada, um papa é punido por um crime: heresia manifesta (ou notória). Contudo, um papa não pode ser julgado pela Igreja, e com isto estamos de acordo com Pe. Cekada. Porém, a Igreja pode declarar que o papa já foi julgado por si próprio, e então declarar a sua deposição, para que todos os efeitos jurídicos se cumpram. Isso é exatamente o que ensina São Roberto Belarmino, conforme já expomos em outras oportunidades [6].
Logo, embora um papa não possa ser julgado pelo direito eclesiástico (e com isto estamos de acordo com Pe. Cekada), a Igreja por direito divino pode afastar de seu meio um papa “herege manifesto”, conforme ensina São Roberto Belarmino:
“A quarta causa é a suspeição de heresia no romano pontífice, se por acaso vier a acontecer; ou também se ele for um tirano incorrigível. Pois se tal situação ocorresse, dever-se-ia congregar um concílio geral, ou para depor o pontífice, se for encontrado herético, ou certamente para admoestá-lo, se parecer incorrigível em seus costumes. Pois, como se diz no oitavo sínodo [IV Constantinopla, Act ultim. can. 21. Anos 869-870], os concílios gerais devem conhecer as controvérsias surgidas ao redor do romano pontífice, e não mover audaciosamente uma sentença sobre ele. Por esse motivo lemos ter sido celebrado o Concílio de Sinuessa pela causa de Marcelino; e concílios romanos pelas causas de Dâmaso, Sixto III e Símaco; e de Leão III e IV, dos quais nenhum foi condenado pelo concílio. Contudo, [o Papa] Marcelino por si mesmo demonstrou seu arrependimento diante do concílio, e os restantes purgaram-se. Veja-se Platina, bem como os tomos dos concílios.” (Disputas sobre a Fé Cristã, Volume II, livro I – Sobre a Igreja, cap. IX) [7].
A reunião de um Concílio Ecumênico não está sujeita ao direito eclesiástico, pois não é uma instituição meramente humana. Sobre isso ensinou São Roberto Belarmino (ver Disputas sobre a Fé Cristã, Volume II, livro I – Sobre a Igreja, livro I, cap. III). Suárez corroborará com esta sentença (De Fide, disp. X, sect. VI, nn. 3-10). O mesmo João de Santo Tomás (Disp. II, art III 26).
Ora, citamos acima São Roberto Belarmino que relata que Concílios foram reunidos para verificar a suspeição de heresia dos Papas Marcelino, Dâmaso, Sixto III, Símaco, Leão III e Leão IV!
O que aconteceu na história da Igreja que os teólogos defenderam não é que a Igreja através de um Concílio Ecumênico possa julgar um papa “manifestadamente herético” por estar acima dele, mas que ela pode verificar através de um Concílio se um papa é “manifestadamente herético” e então neste caso, ele mesmo já teria se julgado e por isso a Igreja pode então declarar a sua deposição. Isso é totalmente diferente da heresia do Conciliarismo da qual nossos adversários falsamente nos acusam!
O mesmo princípio se aplica no caso de um cisma, como foi o Cisma do Ocidente. No caso do Cisma do Ocidente, onde haviam três “papas” revindicando a legitimidade ao Trono de São Pedro. A questão foi resolvida através da reunião do Concílio Ecumênico de Constança (1414-1418 d.C). E sobre isso assim ensinou São Roberto Belarmino:
“[…] Primeiro, o Concílio de Constância é legítimo e aprovado, mas não entra em conflito com o que dissemos [que um Concílio não é superior ao papa]. Com efeito, ele não definiu absolutamente que os concílios gerais recebem de Cristo poder sobre os pontífices, mas apenas naquele caso, isso é, no tempo de cisma, quando não se sabe quem é o verdadeiro papa. Pois um papa dúbio é tido por não papa, e, portanto, ter poder sobre ele não é ter poder contra o papa. Assim expõem Torquemada, Campégio e Sandero.” [8]
Wernz-Vidal, dois padres jesuítas e talvez os mais respeitados comentaristas da tradição canônica da Santa Igreja, em seu comentário Ius Canonicum, cuja edição de 1943 dispomos, assim expõe o nosso caso em estudo (grifos nossos):
“Além disso, um Papa publicamente herético, deve ser evitado pelo mandamento do Apóstolo de Cristo e por causa do perigo para a Igreja, deve ser privado do seu poder, como quase todos admitem. Mas ele não pode ser privado do seu poder por uma mera sentença declaratória.
Com efeito, toda decisão judicial de privação [o que supõe a pena de um crime] pressupõe uma jurisdição superior àquela contra quem a decisão é proferida. Mas o concílio geral, na opinião dos adversários, não tem jurisdição superior à do Papa herético. Pois, segundo supõem, antes da sentença declaratória do concílio geral, ele mantém sua jurisdição papal; portanto, o Concílio não pode proferir uma sentença declaratória pela qual o Romano Pontífice seja privado do seu poder; pois seria uma sentença proferida por um inferior ao verdadeiro Romano Pontífice [Nota 166: Por que Hinschius, 1 c. t. 1, pág. 308, ele se engana se pensa que os casos de heresia e cisma estão verdadeira e adequadamente excluídos do princípio geral: “A Primeira Sé não será julgada por ninguém”]
Portanto, deve ser absolutamente dito que o herético R. Pontífice deveria ser exterminado pelo seu próprio poder. Mas a sentença declaratória do crime, que não deve ser rejeitada como meramente declaratória, faz com que o Papa não seja declarado herege, mas antes seja demonstrado que foi julgado, i. e. O concílio geral declara crime o ato pelo qual o próprio Papa herético se separou da Igreja e se privou da sua dignidade.” (Trecho retirado Ius Canonicum: 453, Tomo II, de Titulus VII – Caput I , pg 518-519).
Wernz-Vidal expõe com maestria toda doutrina católica que aqui expomos e que é totalmente contrária aos ensinamentos de Pe. Cekada. E aqui temos também a correta interpretação que São Roberto Belarmino dá ao defender a quinta opinião teológica sobre um papa herege: o papa herético após perder o pontificado por sua própria iniciativa, pode ser julgado e deposto pela Igreja.
Conclusão
Diante do exposto, concluímos aqui a exposição do sofisma de Pe. Cekada: o papa herético é julgado pela lei divina, aplicada ao final das contas por qualquer um… Sendo que a lei divina é aplicada pela Autoridade Legítima da Igreja através de sua segunda instância maior: um concílio ecumênico! Está aqui implícito que tal concílio deve ser confirmado por um Papa para que seja válido, como ocorreu no caso do Concílio Ecumênico de Constância.
Pela teoria tosca de Pe. Cekada não poderíamos saber quando Deus agiu. Contudo, Ele governa a Igreja através de seus ministros (é por isso que são chamados ministros!) e isso inclui questões gravíssimas como o caso de declarar se um papa perdeu ou não o seu pontificado.
Notas
[1] O que normalmente se conhece por sedevacantismo, acreditamos que necessita de uma maior precisão. Os grupos que nas décadas de 60 a 80 consideravam que a Sé estava vacante, consideramos sedevacantistas. Porém, uma vacância da Sé Apostólica de 60 anos torna a Igreja inviável, pois teria desaparecido totalmente os bispos católicos com jurisdição ordinária. Por isso que pensar que Sé de Pedro está vacante desde João XXIII é uma ideia caduca (ver nosso artigo Sedevacantismo, uma ideia caduca – https://www.veritatis.com.br/sedevacantismo-uma-ideia-caduca) e preferimos chamar o antigo sedevacantismo de eclesiovacantismo. Contudo, há grupos que consideram todos os papas conciliares até Bento XVI e não reconhecem Francisco. A estes podemos chamar sedevacantistas.
[2] CEKADA, Fr. Anthony. Sedevacantismo refutado? Disponível em http://www.traditionalmass.org/articles/article.php?id=15.
[3] De Ecclesia, 1927, 5ª ed., p. 632.
[4] SILVEIRA, Arnaldo Vidigal; A hipótese teológica de um papa herege. Brasília: Edições Veritatis Splendor, 2022, 2a edição, pg 57.
[5] Silveira refere-se, por exemplo, ao Cardeal Journet que embora acreditasse que a heresia interna já separa o fiel do corpo da Igreja, era propenso a acreditar que no caso de um papa herege, este não perdia ipso facto o seu cargo nesta situação. Ver SILVEIRA, Arnaldo Vidigal; A hipótese teológica de um papa herege. Brasília: Edições Veritatis Splendor, 2022, 2a edição, pg 60. No mesmo sentido pensava Garrigou-Lagrange conforme expomos em “Do Papa Herege” (Edições Veritatis Splendor, 2024) páginas 118-122.
[6] LIMA, Alessandro Lima. O ipso facto de São Roberto Belarmino e os sedevacantistas totalistas. Disponível em https://www.veritatis.com.br/o-ipso-facto-de-sao-roberto-belarmino-e-os-sedevacantistas-totalistas/
Ver também https://www.veritatis.com.br/sao-roberto-belarmino-contra-o-sedevacantismo/
[7] BELARMINO, São Roberto. Disputas sobre a Fé Cristã: Sobre a Igreja. Tradução Rafael Marcos Formolo. – Rio de Janeiro: Ed. CDB, 2021. Pg 56.
[8] Ibidem, pg 243.