Por Alessandro Sanmarchi
Tradução: Gederson Falcometa
Em continuidade com o artigo A autoridade papal de Padre Nitoglia* me parece oportuno desenvolver ulteriores observações entorno as teses propostas pelo sedevacantismo.
1) Padre Nitoglia sustentou a tese de Cassiciacum, até essa ter possibilidade de ser verdadeira. Agora esta possibilidade se exauriu (pelos motivos que Padre Nitoglia expõe não apenas neste ultimo artigo) [1], deixando entrever ainda com maior clareza que a tese de uma «vacância total» da Sede Apostólica, não pode que levar a um vínculo cego: uma Igreja privada da autoridade Papal, simplesmente, acabaria, enquanto lhe viria faltar a unidade e todo organismo desprovido de unidade não é mais tal, mas decaí a uma massa amorfa dos seus próprios sub-elementos (quando um animal ou um homem morre, aquilo que permanece é uma massa de células que não tem mais a capacidade de uma inter-relação unitária e de fato em pouco tempo o corpo se decompõe).
1.1) Aqui não vale objetar que o verdadeiro Chefe da Igreja é Cristo (e que então, mesmo sem um Papa, poderia existir uma Igreja «escondida», «puramente pneumática», regida apenas por Nosso Senhor ou pelo Espírito Santo: estas teorias heréticas deixamos aos protestantes e aos gnósticos), desde que foi Cristo mesmo a querer um próprio vigário humano (até o fim do mundo), sem o qual uma visibilidade e uma unidade manifesta da Igreja não poderia exercer-se e então nem ao menos se poderia falar de uma Igreja existente. Epifânia (= manifestação) e existência de fato do verdadeiro Cristianismo não podem separar-se, já que o Catolicismo é essencialmente exotérico (com dois «s» [N.d.t.: Em italiano eSSotérico] em derivação da preposição grega «exo» = fora, que se contrapõe a preposição grega «eso» = dentro, da qual deriva o termo «eSotérico» com um só «s»); ou seja, isto é um ponto de importância verdadeiramente extraordinária, tudo na Igreja é necessariamente expresso de maneira explícita e é conhecível e controlável por alguém, assim na doutrina, como na liturgia e nos sacramentos, ao contrário do que acontece na «gnose», isto é, naqueles movimentos variadíssimos de seitas e sabedorias ocultas (esotéricos) que estão presentes desde sempre na história humana. Aquilo que é reservado «aos poucos», iluminados pela luz de um saber soteriológico (= salvífico) enquanto esotérico (= oculto, isto é escondido a maioria das pessoas, que regularmente são desprezadas), simplesmente por não serem cristãs, porque Nosso Senhor veio para todos (ricos, pobres, inteligentes, estúpidos e ignorantes de toda raça e não, enquanto todos somos pecadores e todos somos um nada comparados a Deus: que soberba pensar possuir diante do Infinito em Ato um título qualquer de mérito, que possa dar direito a uma sabedoria «reservada» e negada aos outros!).
Bem, note-se atentamente, os «sedevacantistas totais» não se dão conta que a ausência de um legítimo vigário de Cristo, terminaria por condenar a Igreja a se transformar em gnose, isto é propriamente o oposto; desde que sem o tramite da autoridade papal, como justamente afirma Padre Nitoglia, não pode ocorrer nem menos unidade atual da Igreja em Cristo. Propriamente porque, o repetimos, é o próprio Cristo a querer o Papa como meio necessário a unidade e então a existência da própria Igreja Católica, que não poderá nunca transformar-se, sob pena de seu próprio aniquilamento, em uma espécie de «Igreja Invisível».2) No meu artigo da estação passada, intitulado O «sedevacantismo e a bula de Paulo IV «Cum ex apostolatus officio», demonstrei que em tal bula o caso específico de um Papa regularmente eleito e transformado, apenas sucessivamente, em herético (em termos técnicos aquilo que é dito caso de «eresia superveniens», isto é, o caso de heresia verificando-se apenas depois de uma válida eleição ao Pontificado) não é considerado aprofundadamente, antes, é excluído quase totalmente do tratamento, já que a única passagem em que se faz menção em tal caso, é extremamente genérica (simplesmente se diz que um Papa que se demonstrasse «a fide devius» poderia legitimamente «ser redarguido»). Papa Paulo IV nunca sonhou em dizer e pensar que um Papa, que eventualmente se tornasse «a fide devius», se aplicasse ipso facto (isto é, sem necessidade de algum ato canônico oficial) a perda automática do cargo (pena, esta, que Paulo IV reserva unicamente aos cargos eclesiásticos abaixo do Papado e, ao invés, a todos os graus do poder político). E muito menos, então, Paulo IV sonhou em excluir de modo absoluto que um Papa legítimo possa eventualmente errar gravemente do ponto de vista doutrinal [2]. Quem sustenta teses similares, deve ajuntar muito «do que é seu», isto é, deve interpretar e estender as palavras de Papa Paulo IV bem além dos limites reais daqueles que foram expressos no texto (e quando não se diga explicitamente que se trata de extensões pessoais próprias, se caí em uma obrigação profundamente incorreta do texto e das próprias intenções do Papa Paulo IV).
2.1) Na verdade Paulo IV condena a privação ipso facto do próprio ofício, exclusivamente daquele Papa que tenha expresso posições doutrinais heréticas antes e apenas antes de ter se tornado Papa. De fato naquele caso se trataria de uma eleição ocorrida de fato, mas inválida de jure, desde que o elegendo, enquanto herético (ainda se não claramente reconhecido como tal), é, segundo Paulo IV, ipso facto privado daquele cargo eclesiástico, que constituí elemento necessário para uma válida eleição.
- Em síntese, três são os pontos diversos da discussão clareados até aqui: I) Paulo IV considerou explicitamente e normatizou o caso dos clérigos heréticos titulares de cargos inferiores ao Papado; II) Paulo IV considerou e normatizou o caso daquele que for ilegitimamente eleito Papa, por causa de uma heresia antecedente a própria eleição; III) Paulo IV deixou completamente aberta, seja do ponto de vista doutrinal ou daquele disciplinar, a questão que diz respeito a uma eventual heresia papal do tipo superveniens. Ora, Carlo Alberto Agnoli é bem consciente de tudo isso, e mesmo assim em um breve artigo seu [3] pretende demonstrar, através de uma análise interna da estrutura do Codex Juris Canonici de 1917, que nele esteja não apenas incluso o ponto I (e isto, é sem dúvida concedido, como veremos em breve), mas também os pontos II e III. Demonstrarei pelo contrário, que o motivo pelo qual o Ponto II não pode ser considerado implícito, nem enquanto dito por Paulo IV e nem enquanto estatuído explicitamente pelo Codex, constituirá também a razão pela qual nem mesmo o ponto II pode dizer-se, para além de qualquer dúvida legítima, recebido pelo Codex.
3.1) Em primeiro lugar não parece razoável afirmar que tal caso de todo sui generis e tendo possíveis implicações negativas de gravidade extrema, como aquela do Papa, possa ser resolvida sobre o plano jurídico mediante a argumentação do tenor daquela expressa por Agnoli, segundo a qual, porque o Cânone 108 parágrafo 3 do Codex Juris Canonici de 1917, dando a definição de «clérigo» incluí em tal categoria também o Papa (como poderia ser de outra forma?), então também ao Papa vai aplicado a disposição disciplinar do Cânone 188 parágrafo 4 (que receberia, segundo Agnoli, o quanto infalívelmente foiestabelecido pela bula de Paulo IV): «Todo ofício permanece vacante por tácita renúncia ipso facto e sem alguma declaração, se o clérigo publicamente tenha se afastado da fé católica». Se as coisas foram nestes termos, se cometeria porém, o mesmo erro (contra o mais elementar bom senso) que teria cometido um vigia parando uma ambulância em emergência, antes que no código de trânsito fosse inserido em favor da ambulância uma exceção a norma genérica que veta aos veículos de passar o cruzamento com o semáforo vermelho. Certo, também a ambulância é um veículo, assim como o Papa um clérigo, mas quem não veria que se trata de dois tipos de veículos e de clérigos que desenvolvem funções essencialmente diversas (ao menos em parte)? Não é então ilícito pretender que a funções diversas, antes, únicas (por importância e especificidade) no caso do Papa, deva corresponder uma regulamentação jurídica ad hoc.
Em outras palavras, dado que o Cânone 188 parágrafo 4 compreende na Seção I do Codex, que é intitulada De clericis in genere, e porque nele não aparece explicitamente alguma referência ao cargo Papal, não me parece legítimo, e muito menos pacífico, estender sic et simpliciter a norma ao cargo em si único do Papado [4]; e isto não só em referência ao caso não considerado na bula de Paulo IV (v. o dito ponto III), mas também em referência ao caso ivi considerado (v. o dito ponto II). É ao invés, muito razoável reter que se trata de um caso jurídico não ainda definitivo (lacuna legislativa), propriamente motivado pela grande dificuldade que a questão do Papa herético coloca sobre o plano teológico e doutrinal.
3.2) Além disso, apesar daquilo que afirmei precedentemente no artigo citado, refletindo melhor, me parece dúbia, também uma segura atribuição de infalibilidade a bula de Paulo IV. De fato, basta ler-se com cuidado a Constituição Apostólica Pastor Aeternus do Concílio Vaticano I (18 de julho de 1870), para saber com certeza os critérios a verificar-se para julgar a infalibilidade ou não de um documento do magistério pontifício. Tal Constituição contém de fato, a celebérrima declaração através da qual Pio IX define a infalibilidade pontifícia, delimitando claramente a aplicabilidade na base de quatro critérios. Aqui o extrato fundamental:
«Por isso Nós, apegando-nos à Tradição recebida desde o início da fé cristã, para a glória de Deus, nosso Salvador, para exaltação da religião católica, e para a salvação dos povos cristãos, com a aprovação do Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis» (Concilio Vaticano I, Costituzione dogmatica Pastor Aeternus, 18 luglio 1870, Denzinger, nn. 3073-3074).
Do texto da Pastor Aeternus se evidenciam então as seguintes quatro condições, necessárias para que a infalibilidade pontifícia se realize [5]:
- I)As doutrinas definidas devem sê-lo nas circunstâncias em que o Pontífice se exprima como Pastor e Doutor de todos os Cristãos (ou seja, são excluídas as circunstâncias em que o Pontífice cumpre declarações privadas ou segundo meios e modalidades expressivas que não impliquem claramente a intenção de exercitar tal prerrogativa);
- II)O Pontífice deve também empenhar explicitamente a suprema autoridade apostólica, que lhe deriva por ser o sucessor de Pedro;
- III) O Pontífice deve manifestar explicita e evidente a intenção de definir, quando afirma, como dogma (ou seja, como doutrina estabelecida definitivamente e irreformavelmente, que comporta a obrigação absoluta de assentimento por parte de toda a Igreja);
- IV)As doutrinas definidas devem ser sobre matéria de fé ou de moral.
Ora, é evidente que a bula de Paulo IV não satisfaz ao menos o quarto critério de aplicação da infalibilidade, porque é um documento que tem por primeira função, aquela de culminar penas disciplinares e não aquelas de discutir, definir ou condenar de forma exaustiva aspectos doutrinais em matéria de fé e/ou moral. Nem é a reprovação fundamental própria a falta de tratamento do caso que diz respeito a uma eventual heresia superveniens do Papa, que é pelo contrário, o ponto teológico de maior relevância, para qualquer um que tivesse a intenção de abordar o tema das possíveis derivas heréticas do clero sobre o plano teórico-doutrinal e não sobre aquele de uma urgência puramente prático-disciplinar. Não constituiria talvez um absurdo lógico a pretensão de abordar uma uma questão do ponto de vista teórico doutrinal, deixando-lhe completamente de lado o ponto mais essencial, sem nem menos esboçar uma justificação para tal contra-senso?
Ao contrário não é absurdo, mas mesmo indício de prudência, na urgência ditada pelas circunstâncias [6], limitar-se a regular sobre o plano prático-jurídico exclusivamente aqueles aspectos, de uma questão teológica complexa, que colocam menos «quebra-cabeças» teóricos. Ora, a remoção ipso facto dos clérigos de grau inferior ao Papa dos seus cargos (em caso de heresia) não comporta nem o número nem a complexidade de implicações gravíssimas (assim graves e complexas, que nem mesmo nos nossos dias, a cinco séculos de distância da bula de Paulo IV, o problema teológico em questão pode dizer-se resolvido), que ao invés se teria caso fosse possível a remoção tácita ou automática do Pontífice (isto é a remoção ipso facto no caso de heresia). Na verdade, na ausência de qualquer forma de procedimento oficial (apta a reconhecer e sancionar para além de toda dúvida uma eventual heresia papal), um Papa herético ou uma série de Papas heréticos (=falsos papas), os quais todavia por longo tempo não venham reconhecidos explicitamente como tais e então de fato não venham removidos do seu ofício (é propriamente este o caso que realmente se verifica, segundo os sedevacantistas, a partir de Pio XII em diante), terminaríamos por tornar estéreis todos os meios salvíficos, tanto a comprometer a sobrevivência da própria Igreja. De um Papa que fosse tal apenas aparentemente (não sendo mais em realidade, nem materialiter nem formaliter) descenderia uma hierarquia falsa e ilegítima quanto ao seu poder de consagrá-la; uma hierarquia incapaz de consagrar novos sacerdotes e de comunicar, confessar, crismar, celebrar matrimônios, assistir validamente o povo de Deus, o qual, em lugar dos verdadeiros sacramentos, realmente eficazes, terminariam por receber meros «placebos espirituais».
Aqui os casos são dois: ou a Igreja pode viver indeterminadamente sem o Papa, e então essa viria a coincidir de fato com uma igreja de tipo protestante, em que a hierarquia é de tudo extrínseca, sendo reduzida a absolver funções puramente didáticas e não sacramentais; ou com mais coerência é necessário concluir que a Igreja Católica não pode sobreviver a falta de continuidade na sucessão apostólica (o que condena definitivamente as teses sedevacantistas).
Notas:
[1] Se veja também: Don Curzio Nitoglia, A propósito de «sedevacantismo», EFFEDIEFFE, 12/07/09 .
[2] Este é o trecho: «Nós, retemos que uma tal matéria seja de tal forma grave e perigosa que o próprio Romano Pontífice, o qual age na terra como Vigário de Deus e de Nosso Senhor tem o pleno poder sobre todos os povos e reinos, e a todos julga e não pode ser julgado por ninguém, se for reconhecido desviado da fé pode ser redarguido». E, todos os outros trechos, em que Paulo IV se refere ao caso do Papa, são apresentadas os advérbios «ante/antea», que claramente colocam a heresia ocorrida em tempos antecedentes a eleição ao Pontificado. Nesta passagem pelo contrário, não existem especificações adverbiais e a sua reação, que é indicada por Paulo IV contra o eventual erro papal, não é a pena da decadência da carga adquirida, mas a simples permissão de «repreender ou refutar» o papa errante, embora ele goze da máxima autoridade sobre a terra. Quando ressalta in primis desta passagem é então a unicidade absoluta reconhecida a condição papal; unicidade que vale também nos casos negativos e que Paulo IV ao equipara a eventualidade de um Papa herético àquela de qualquer outro clérigo herético. A única dedução que se pode tirar de tudo isto, é que para Paulo IV seja admissível o caso de um papa, regularmente em posse da própria autoridade, e que apesar disto, possa errar doutrinalmente: como se vê, exatamente a conclusão oposta aquela que muitos sedevacantistas pretendem que se deva obter da bula de Paulo IV.
[3] O artigo ao qual me refiro é intitulado Objeções a Bula de Papa Paulo IV e foi reportado por Arai Daniele na parte inferior do seu artigo Liberdade religiosa e sinal dos tempos, publicado em EFFEDIEDDE em 31/07/2008
[4] Na individualidade do Papa se somam de fato as prerrogativas únicas do seu ofício apostólico: a exclusividade do cargo, que, vivendo um Papa, não pode pertencer a nenhum outro clérigo, e o poder doutrinal supremo, que, diretamente assistido pelo Espírito Santo, pode impor-se sobre qualquer outro. Por estes motivos o cargo papal é um unicum absoluto respeito a todos os outros cargos hierárquicos.
[5] Para que não restem banais equívocos, duas observações preliminares devem ser feitas: 1) Naturalmente o pontífice pode definir uma doutrina seja positiva ou negativa, isto é, pode afirmar a necessidade que uma dada doutrina venha aceitada ou ao contrário recusada por parte de toda a Igreja; 2) os quatro critérios da infalibilidade, onde encontram de fato, tem valor heurístico também retroativo, isto é, consentem de individuar definições infalíveis mesmo em documentos pontifícios anteriores a 1870, porque a definição dogmática, como ocorre muitas vezes, não constitui senão a conclusão de uma longa controvérsia precedente. Para ulteriores e significativas observações mando novamente ao valiosíssimo artigo de Arnaldo Xavier da Silveira (Qual é a autoridade doutrina dos documentos pontifícios e conciliares?, em «Cristianità», 9, 1975, p. 7).
[6] É o próprio Agnoli a recordar que o «occasio legis» foi, para Paulo IV, o temor «que no conclave convocado sucessivamente a sua morte pudesse ser eleito o cardeal Morone (suspeito de heresia, mas que jamais foi oficialmente reconhecido como herético) […]».
Fonte: https://falcometa.blogspot.com/2016/02/ulteriores-especificacoes-contra-o.html