Por Alessandro Lima
Introdução
Depois que a falácia da perda do pontificado ipso facto baseada numa interpretação torta de São Roberto Belarmino [1], veio à tona, os sedevacantistas totalistas se escondem agora debaixo de uma nova desculpa: a invalidade das eleições dos papas conciliares.
Curiosamente, outro sedevacantista, o Bispo Donald Sanborn, um dos maiores promotores da Tese de Cassiciacum, é quem vai refutar mais esta falácia de seus amigos sedevacantistas totalistas.
Uma breve exposição sobre a Tese de Cassiciacum
A Tese Cassiciacum (ou Sedeprivacionismo) foi originalmente formulada pelo teólogo dominicano francês e mais tarde consagrado ilicitamente bispo Guerard Des Lauriers. A tese sustenta que os papas pós-conciliares, devido à sua heresia pública, ocupam materialmente a Santa Sé; não receberam o elemento formal, que é a plenitude do poder (ou seja, a jurisdição) [2]. Assim, os papas pós-conciliares não são papas no verdadeiro e próprio sentido do termo, mas apenas papas eleitos (ou designados), como diz o Bispo Donald Sanborn [3].
A eleição válida dos papas conciliares segundo o Bispo Sanborn
Diz o ditado que “um relógio quebrado está certo pelo menos duas vezes ao dia”. Portanto, embora consideremos a Tese de Cassiciacum uma outra falácia sedevacantista, concordamos que os argumentos do Bispo Sanborn são verdadeiros quanto à validade da eleição dos papas conciliares.
No seu artigo “Explicação da Tese do Bispo Guerard Des Lauriers”, o Bispo Sanborn traça uma distinção nítida entre o direito de eleição e o poder de governar. Ele argumenta que os hereges públicos mantêm o direito de eleição, ao mesmo tempo que nega que tenham o poder de governar (ou seja, jurisdição).
Ele escreve,
“P. Por que a deserção da Fé não seria um obstáculo ao poder de eleger um papa?
Resposta: Porque a heresia pública não tem efeito legal até que seja declarada e reconhecida pela autoridade legal. Portanto, o seu direito legal de eleger um papa permanece até que seja legalmente removido. A heresia não é um obstáculo ao poder de designar, mas ao poder de governar. Pois pela heresia a pessoa é de fato separada da Igreja e torna-se, portanto, radicalmente incapaz de governar a Igreja. Mas porque os cardeais não são hereges na ordem jurídica, isto é, não são legalmente declarados hereges, continuam a ser capazes de praticar ações que pertencem à ordem puramente jurídica, como a eleição de um candidato a papa.”[3]
O problema como o argumento da pergunta é que a sentença declaratória não inflige realmente uma pena, portanto, se a heresia for notória pela notoriedade dos fatos, o clérigo também perderia o seu direito de eleição. É por isso que o Bispo Sanborn é forçado a negar que os Papas e Cardeais pós-conciliares sejam hereges notórios no significado canônico do termo. De acordo com Sanborn,
“VI. O Cânone 188 § 4 diz que aquele que publicamente desertou da Fé renuncia tacitamente ao seu cargo. Mas os “papas” conciliares desertaram publicamente da Fé Católica. Portanto, eles renunciaram tacitamente ao seu cargo. Portanto, eles não são papas nem formalmente nem materialmente.
Resposta: Distingo o maior: o Cânon 188 § 4 diz que aquele que desertou publicamente da Fé Católica renuncia tacitamente ao seu cargo, se a sua imputabilidade for pública, admito; entretanto, se for oculto, eu nego. A razão é que a deserção da Fé deve ser legalmente conhecida, o que acontece quer por declaração, quer por notoriedade. Mas a notoriedade exige que não só o fato do crime seja conhecido publicamente, mas também a sua imputabilidade (Cânon 2197). No caso, porém, de deserção da Fé Católica, seja por heresia ou por cisma, é necessário que a deserção seja pertinente para que seja imputável. Caso contrário, a lei torna-se absurda: todo sacerdote que, por falta de advertência num sermão, pronuncia uma heresia seria culpado de heresia notória, com todas as penas conexas, e renunciaria tacitamente ao seu cargo. Mas a deserção da Fé Católica por parte dos papas conciliares, embora seja pública no que diz respeito aos fatos, não é pública no que diz respeito à imputabilidade e, portanto, não há renúncia tácita. O que é público é a intenção destes “papas” de promulgar erros condenados pelo magistério eclesiástico e uma prática sacramental herética e blasfema. Por ser assim, deve-se concluir que eles necessariamente não possuem autoridade apostólica, mas não se pode concluir mais ou menos. Nem mais, porque só a autoridade competente é capaz de apurar e declarar legalmente a realidade da sua deserção da Fé Católica, e não menos, porque é impossível que a autoridade apostólica, devido à infalibilidade e indefectibilidade da Igreja, promulgue erros que foram condenados pelo magistério eclesiástico e uma prática sacramental herética e blasfema.”[4]
O problema o argumento apresentado na pergunta é que se falta o elemento formal da heresia (isto é, pertinácia), então os papas pós-conciliares não são hereges propriamente ditos. Sanborn até concorda com esta visão, quando escreve que quando a pertinácia está ausente não há violação externa da lei. Se for esse o caso, então como podem os papas pós-conciliares serem culpados do delito de heresia? Sanborn escreve,
“Instância: Mas o Cânone 2200 presume a imutabilidade se o fato do crime for provado.
Resposta: Eu distingo. Presume imputabilidade dada a violação externa da lei, admito; presume imputabilidade quando a lei não foi violada externamente, eu nego. No caso de deserção da Fé Católica, a violação da lei envolve pertinácia e, se esta estiver ausente, a lei não é violada. Onde, portanto, a pertinácia não é notória nem declarada por lei, o Cânon 2200 não pode ser aplicado.”
Ele continua,
“Instância: O cânon 2200 § 2 presume imputabilidade quando há violação externa da lei.
Resposta: Isso é uma petição de princípio. Citar este cânone é circular, porque a violação da lei no caso de heresia exige pertinácia. Leia a lei: (Cânon 1325 § 2): Se alguém, após a recepção do batismo, embora mantendo o nome de cristão, nega ou duvida obstinadamente sobre qualquer uma das verdades que devem ser cridas por obrigação da fé divina e católica, é um herege; se ele abandona inteiramente a fé cristã, é um apóstata; finalmente, se recusa a submissão ao Sumo Pontífice, ou rejeita a comunhão com os membros da Igreja sujeitos a este, é um cismático. Portanto, não há violação externa da lei onde não há pertinácia externa. Mesmo que se pretenda aplicar o Cânon 2200 § 2, a presunção de imputabilidade em violação da lei contra a heresia nada importa sem a declaração da Igreja, porque a presunção deve ceder aos fatos. De fato, porém, não é certo que estes “papas” heréticos sejam pertinazes, nem existe uma autoridade ou tribunal competente que seja capaz de declarar o fato da pertinácia. Todo o argumento funciona sob a dificuldade de provar ou mesmo presumir pertinácia. Por outras palavras, quando há falta de autoridade, ou quando esta deixa de funcionar, resulta confusão e a certeza em questões jurídicas torna-se extremamente difícil, senão impossível. Este argumento desce sempre para um argumento sobre a pertinácia destes “papas” do qual, na minha opinião, não há saída.”
Conclusão
Quem diria que um sedeprivacionista refutaria as teses de seus amigos sedevacantistas? Em resumo, os argumentos apresentados pelo Bispo Sanborn é que , se a pertinácia estiver factualmente ausente ou judicialmente inverificável, em caso de heresia, então não há tecnicamente nenhum delito digno de menção. Como o canonista Pe. John Heneghan observa,
“Para que se possa dizer que foi cometido um delito canônico é necessário que haja uma violação externa e moralmente imputável de uma lei à qual foi anexada uma sanção canônica [cânon 2195.1]. Duas condições devem, portanto, ser necessariamente verificadas antes de um delito ser estabelecido: o fato externo e objetivo da violação de tal lei e o elemento interno e subjetivo da imputabilidade moral. Se algum dos elementos estiver ausente, não há delito.” [5]
Não basta que os sedevacantistas totalistas pensem que Fulano ou Beltrano são hereges. Eles não têm Autoridade para tal julgamento. Um herege deve ter sido julgado pela legítima Autoridade da Igreja, para que a sua pena gere as consequências necessárias na ordem social da Igreja, como por exemplo, a perda da sua jurisdição, se for um clérigo ou um leigo investido num tribunal eclesiástico.
Notas
[1] LIMA, Alessandro. O ipso facto de São Roberto Belarmino e os sedevacantistas totalistas. Disponível em https://www.veritatis.com.br/o-ipso-facto-de-sao-roberto-belarmino-e-os-sedevacantistas-totalistas/
[2] Pe. Francesco Ricossas fornece trechos dos escritos do Bispo Lauriers em seu artigo Pope, Papacy, and the Vacant See. https://mostholytrinityseminary.org/wp-content/uploads/2019/01/Fr.-Ricossas-article-Pope-Papacy-and-the-Vacant-See.pdf
[3] SANBORN, Donald. Explicação da Tese. Disponível em https://mostholytrinityseminary.org/wp-content/uploads/2019/01/Explanation-of-the-Thesis.pdf
[4] SANBORN, Donald. Sobre ser um Papa materialmente (segunda parte). Disponível em https://mostholytrinityseminary.org/wp-content/uploads/2019/01/On-Being-a-Pope-Materially.pdf. Grifos nossos.
[5] HENAGHAN, John Joseph. The Marriages of Unworthy Catholics, Canons 1065 and 1066: A Historical Synopsis and Commentary (Washington: CUA Press, 1944), 59.