Por Alessandro Lima
Introdução
Os sedevacantistas totalistas afirmam que os Papas conciliares (João XXIII, Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e Francisco) não são papas legítimos, pois suas eleições foram inválidas [1].
Eles estão cientes que o Papa Pio XII (último Papa reconhecido pela maioria deles) na Constituição Apostólica Vacantis Apostolicae Sedis, 8 de dezembro de 1945 determinou que nenhum cardeal deve ser impedido de participação ativa (ser um eleitor) ou passiva (ser um eleito) em um Conclave para a eleição papal; mesmo que tenha incorrido em alguma censura canônica (incluindo aí a excomunhão) APENAS para efeito da eleição, permanecendo a censura após a mesma. Então por que razão possuem este parecer? Seus argumentos possuem algum fundamento na realidade?
O que definiu a Constituição Apostólica Vacantis Apostolicae Sedis?
Desde o século XI os Papas tomaram para si o dever de definir como seus sucessores seriam eleitos [2]. O Papa Nicolau II (1059), definiu em sua bula In Nomine Domini que somente Cardeais poderiam participar da eleição, tradição que se mantém até os dias atuais.
O Papa Pio XII, seguindo esta longa tradição papal, também determinou regras para a eleição de seu sucessor através da Constituição Apostólica Vacantis Apostolicae Sedis. A Constituição não trata apenas das regras para o Conclave, mas também, daquelas necessárias à Administração da Igreja enquanto a Sé estiver vacante. Neste último caso, a Constituição define que o Governo da Igreja ficará a cargo do Colégio de Cardeais.
Sobre o nosso tema em estudo, o que nos interessa no referido documento é o que se define sobre a participação dos cardeais:
“34. Nenhum dos Cardeais, sob pretexto ou causa de qualquer excomunhão, suspensão, interdito ou outro impedimento eclesiástico, pode ser de forma alguma excluído da eleição ativa e passiva do Sumo Pontífice; Suspendemos estas censuras apenas para efeito desta eleição, embora de outra forma permaneçam em vigor.”
No Código de Direito Canônico de 1917 (que os sedevacantistas dizem reconhecer), o Cânon 2314 n.1,1 estabelece que os hereges, cismáticos e apóstatas incorrem em excomunhão automática. Se for clérigo, a jurisdição é perdida após duas admoestações do superior sem sucesso (Cânon 2315 n1,2) [3].
Considerar que Pio XII foi o último Papa e que o Código de Direito Canônico de 1917 esteja ainda em vigor, é uma petição de princípio sedevacantista, pois algo que que se quer provar não pode ser premissa. Contudo, para fins meramente retóricos concederemos, para mostrar que os sedevacantistas não estão de acordo nem mesmo com as premissas que consideram verdadeiras.
O Cardeal Angelo Giuseppe Roncalli que foi eleito Papa João XXIII, pelo que consta não sofreu qualquer sanção de excomunhão por parte da Igreja. Ainda que o tivesse sofrido, esta pena estaria suspensa no Conclave que o elegeu, tornando a sua participação passiva (ser eleito papa) totalmente válida e o mesmo se estende aos seus sucessores.
O argumento sedevacantista
Pe. Anthony Cekada, o principal promotor do sedevacantismo, reconhece que canonicamente não há qualquer óbice que possa tornar inválidas as eleições os papas conciliares. Em seu artigo “Can an Excommunicated Cardinal be Elected Pope?” [Pode um Cardeal excomungado ser eleito Papa?] [4], Pe. Cekada divide a sua argumentação em três tópicos onde pretende responder a três perguntas:
1) Qual é a interpretação da Igreja desta passagem [do n.34 da Vacantis Apostolicae Sedis]?
Resumidamente, assim ele responde:
“De modo geral, a ‘interpretação’ no direito canônico vem de uma autoridade pública, como o papa, sua cúria, etc. (isso é chamado de interpretação autêntica) ou de outra fonte reconhecida, como o ensino dos canonistas (e isso é chamado de interpretação doutrinária ). (Para uma discussão completa, veja Abbo e Hannon, 1:17.)” [Ibidem. Grifos nossos.]
E sobre isso estamos em pleno acordo com Cekada.
2) [A Constituição de Pio XII] Levanta todas as excomunhões, impedimentos eclesiásticos e censuras para todos os participantes de um conclave papal? Será que isto também inclui o cardeal que foi eleito papa, porque é isso que o termo eleição “passiva” parece significar?
Assim ele responde:
“Tendo estabelecido o significado destes termos no parágrafo 34 da Constituição de Pio XII, podemos facilmente ver o ponto da lei: para evitar disputas intermináveis sobre a validade das eleições papais.
Torna-se então fácil responder à segunda pergunta: “Isso levanta todas as excomunhões, impedimentos eclesiásticos e censuras para todos os participantes de um conclave papal?”
A resposta é sim.
O parágrafo 34 também cobre o caso de um cardeal excomungado que foi eleito papa?
Novamente, a resposta é sim, porque a Constituição utilizou os termos eleição ativa e passiva, que significam, respectivamente, poder votar e poder ser eleito. Portanto, é de fato correto dizer que a Constituição de Pio XII permite explicitamente que um cardeal excomungado seja validamente eleito papa.” [Ibidem. Grifos nossos.]
Certamente aqui também estamos em pleno acordo com o Pe. Cekada.
Iremos então para a última pergunta e para a parte mais cômica (para não dizer mais trágica) do artigo do Pe. Cekada.
3) Nesse caso, a passagem significa que um cardeal excomungado pode ser validamente eleito papa. Isto não derruba o princípio fundamental por trás de todo o caso sedevacantista?
Ele assim responde:
“Mas aqui, a resposta é não.
A maioria dos tipos da FSSPX, muitos sedevacantistas e até acadêmicos inteligentes como Pe. Harrison assume que a excomunhão é o ponto de partida para o argumento sedevacantista, que eles acreditam ser mais ou menos assim:
- O direito canônico impõe uma excomunhão automática a um herege.
• A excomunhão impede que um clérigo vote para eleger alguém para um cargo, seja ele próprio eleito para um cargo ou permaneça no cargo depois de se tornar um herege público.
• Paulo VI e os seus sucessores incorreram nesta excomunhão por heresia pública.
• Portanto, eles não eram verdadeiros papas.
Retire a possibilidade de excomunhão com o n.34 da Constituição de Pio XII (vai o argumento anti-sede), e o argumento sedevacantista desaparece.
Mas eles entendem mal. A excomunhão é uma criação do direito eclesiástico e não é o ponto de partida para o argumento sedevacantista.
Na verdade, não tem nada a ver com isso.
Em vez disso, para o sedevacantismo o ponto de partida é um princípio inteiramente diferente: que a lei divina impede que um herege se torne um verdadeiro papa (ou permaneça como tal, se um papa abraçar a heresia durante o curso do seu pontificado). Este princípio vem diretamente das seções dos principais comentários pré-Vaticano II sobre o Código de Direito Canônico que tratam da eleição para o cargo papal e das qualidades exigidas na pessoa eleita.”
Para começar, a afirmação do Pe. Cekada de que “a excomunhão é uma criação do direito eclesiástico” é totalmente equivocada. Um dos múnus da Igreja é o poder de governar, o que inclui a admissão, demissão e restrição a serem impostas aos fieis. O Direito Eclesiástico apenas regula como as coisas devem ser feitas na Igreja e pela mesma Igreja, pois a Igreja de Jesus, embora muitas vezes não pareça, não é a casa da mãe Joana. O Direito é uma ferramenta e não a Autoridade em si, pois esta pertence à Igreja (cf. 1Tm 3,15).
Em segundo lugar, o argumento de que “lei divina impede que um herege se torne um verdadeiro papa (ou permaneça como tal, se um papa abraçar a heresia durante o curso do seu pontificado)” é falso. Não negamos que haja uma incompatibilidade entre a heresia e a jurisdição eclesiástica. Porém esta incompatibilidade é in radice e não absoluta como já demonstramos em outras oportunidades [ver nota 3].
Um impedimento eclesiástico (seja na aceitação de uma eleição ao papado ou se um papa perdeu seu pontificado) só pode ser aplicado ou declarado pela Autoridade Legítima, que são os bispos, cardeais ou um Concílio Ecumênico. Ainda mais quando o assunto é de jurisdição eclesiástica. Ora, a jurisdição é um poder dado por Cristo à Igreja. Não é um graça de tipo sacramental que pode ser perdida por um pecado cometido, mas é poder dado a alguns em benefício de muitos. O uso ou a regulação deste poder cabe à mesma Igreja e não estão sujeitos à interpretação particular, como faz Pe. Cekada.
Para tentar apoiar sua tese ele nos remete às seguintes referências:
“Os hereges e os cismáticos estão excluídos do Supremo Pontificado pela própria lei divina … [Eles] devem certamente ser considerados excluídos da ocupação do trono da Sé Apostólica, que é o mestre infalível da verdade da fé e o centro da unidade eclesiástica”. (Maroto, Instituições IC 2:784)
“ Nomeação para o Ofício do Primado . 1. O que é exigido pela lei divina para esta nomeação… Também é necessário para a validade que o eleito seja membro da Igreja; portanto, hereges e apóstatas (pelo menos os públicos) são excluídos .” (Coronata, Instituições IC 1:312)
“Todos aqueles que não são impedidos pela lei divina ou por uma lei eclesiástica invalidadora são validamente elegíveis [para serem eleitos papa]. Portanto, um homem que usufrua do uso da razão suficiente para aceitar a eleição e exercer a jurisdição, e que seja um verdadeiro membro da Igreja, pode ser eleito validamente, mesmo sendo apenas um leigo. Excluídos como incapazes de eleição válida , porém, estão todas as mulheres, crianças que ainda não atingiram a idade da discrição, aqueles que sofrem de insanidade habitual, hereges e cismáticos .” (Wernz-Vidal, Jus Can. 2:415)
Pe. Cekada na verdade recicla o seu velho argumento de que o pecado de heresia faz perder a jurisdição, para agora dizer que o mesmo pecado impede a eleição. O primeiro caso já foi refutado [5] e o problema neste novo argumento é o mesmo: o pecado de heresia não tem efeito sobre a jurisdição eclesiástica (seja para retirá-la ou para concedê-la. Este último é o caso que estamos discutindo), mas sim o crime de heresia.
Devemos observar que os canonistas que o Pe. Cekada invoca para dar suporte à sua teoria, não dizem que é o pecado de heresia que impede a eleição papal, como ele tenta fazer crer. Outra coisa digna de nota é que os canonistas tratam do direito e não de teologia sacramental, logo estão referindo-se ao crime de heresia e não ao pecado de heresia. Eles referem-se à lei divina porque a Igreja não é positivista. Suas leis têm lastro e estão ordenadas pelos princípios da lei natural e divina. Sendo esta mesma Igreja coluna e fundamento da Verdade (cf. 1Tm 3,15) cabe a ela aplicar tais princípios na lei eclesiástica. Sendo esta mesma Igreja uma sociedade, a regulação da vida desta mesma sociedade se dá pelas leis eclesiásticas, que como já dissemos, aplica os princípios da lei natural e divina.
A admissão bem como a demissão de um membro a um cargo em qualquer sociedade humana estão reguladas pela lei desta mesma sociedade. Sabemos contudo que nem todas as leis humanas são legítimas, ou seja, nem todas tiram seus princípios da lei natural e divina. Porém, não é assim na Igreja.
Se o Cardeal Angelo Roncalli foi eleito legitimamente Papa João XXII segundo as regras estabelecidas pelo Papa Pio XII (eleição canônica válida, fato que Pe. Cekada não nega), para a sociedade dos fieis católicos, ele é Papa independentemente do que venham pensar uns ou outros. Mas segundo Pe. Cekada, embora sua eleição canônica seja válida, ela é inválida em outro sentido, pois o eleito incorreu na pena de heresia ou apostasia segundo uma lei divina cujo intérprete é ele mesmo. Não percebem o absurdo disso?
De forma alguma negamos que tal lei divina exista (como já dissemos as leis eclesiásticas não são meramente positivistas), contudo ela é aplicada pela Autoridade Legítima da Igreja em legislação competente e autorizada onde é esta mesma Autoridade quem a julga e aplica aos casos concretos e não o juízo privado do Pe. Cekada ou de quem quer que seja.
Conclusão
Se o argumento do Pe. Cekada estivesse correto, não poderíamos garantir que os alguns papas do período patrístico ou da Igreja Média foram legítimos. Em última instância significaria que o Papa Pio XII definiu uma lei eclesiástica que contraria uma lei divina, pois permitiu que um suposto herege público (fato totalmente desconhecido dos cardeais e bispos da época) chegasse ao papado, demonstrando a absurdidade de tal ideia.
Se a aceitação de um Papa dependesse do subjetivismo cekadista, estaríamos perdidos. É por essa e outras que os teólogos têm estabelecido princípios e a própria Igreja meios que eliminem qualquer tipo de dúvida sobre a eleição de um papa, que seria, com efeito, muito danosa à toda comunidade eclesial: 1) Os teólogos ensinaram de forma consensual que a Igreja inteira jamais poderia aceitar um papa ilegítimo [6]. 2) A suspensão dos impedimentos canônicos que poderiam deixar dúvidas sobre a eleição de um papa é um dos recursos que os Papas procuraram definir para que a Igreja tenha paz após um Conclave.
Notas
[1] Os sedeprivacionistas, por exemplo, não seguem a tese de que a eleição dos papas conciliares foi válida, porque supostamente foram hereges. Para saber mais veja https://www.veritatis.com.br/a-falsa-tese-da-eleicao-invalida-dos-papas-conciliares-respondida-por-um-sedeprivacionista/
[2] O Conclave e sua história. Disponivel em https://www.veritatis.com.br/o-conclave-e-sua-historia/
[3] Tratamos deste assunto aqui https://www.veritatis.com.br/excomunhao-ipso-facto-sim-perda-da-jurisdicao-ipso-facto-nao/
Veja também https://www.veritatis.com.br/o-canon-188-%c2%a74-do-cic-1917-e-a-perda-da-jurisdicao-ipso-facto/
[4] Veja em seu artigo “Can an Excommunicated Cardinal be Elected Pope?”, disponível em https://www.fathercekada.com/2007/06/25/can-an-excommunicated-cardinal-be-elected-pope/
[5] Veja a refutação deste argumento em https://sedevacantismo-exposto.com.br/nova-teoria-cekada-pecado-heresia-faz-perder-cargo/
[6] Aqui há uma longa lista de citações: https://unamsanctam.great-site.net/aceitacao-pacifica-e-universal-do-papa-citacoes-do-seculo-15-ao-21.html